Não recordo-me de quando ou como os conheci, mas é certo que sempre estiveram presentes em determinadas ocasiões. Eram amigos dos meus avós e, por conseguinte, amigos dos meus pais. Era certo de nos encontrarmos na praia e fomos à casa deles umas duas vezes, creio eu.
“Sô” Antônio era um homem magro e muito alto, calvo, carregava óculos de lentes grossas e de armação antiquada. Bem, não sei se ele era realmente alto ou se eu é que sempre fui baixinho, mas a mim me parecia bem alto. Apesar de sua fisionomia séria, era um homem de riso fácil e sua voz era bem suave, bem como a sua fala. Era até engraçado, pensando agora, ver um homem tão alto falar de forma tão suave e tão baixo. Penso que era de sua personalidade e fruto de sua educação também porque, convenhamos, não há nada mais desagradável do que alguém que fala alto ou que é espalhafatoso. Sô Antônio era taxista e, ao contrário da maioria dos motoristas profissionais, era um homem bem tranquilo. Lembro-me de sua risada até hoje... era sincera, mas contida. Nada de gargalhadas. Talvez tenha tido pais rígidos ou tenha sido militar ou tão somente tivesse percepção da tão falada “etiqueta”. O fato é que era um homem agradabilíssimo até mesmo para mim, que na época era uma criança.
A Maria Helena –esta sim não tinha pronome de tratamento por ser tão...próxima – era uma professora aposentada. Estava sempre muito bem alinhada, mas nada de roupas sofisticadas... andava sempre apresentável . Tinha os cabelos grisalhos e curtos , como as senhoras costumam usar a partir de uma certa idade; usava óculos de lentes grandes e também uma armação antiquada... num tom meio acobreado. Lembro-me da Maria Helena sempre de batom e o cabelo grisalho, que mais parecia prateado – muito bonito, por sinal – sempre penteado. Ela era uma mulher bem instruída e de riso fácil. Tal qual o seu marido, não dava gargalhadas e jamais fazia alarde para rir ou contar histórias. Mas, ao contrário do marido, era mais solta e informal... sua voz era envelhecida... assim, meio rouca, mas nada que lembrasse doença. É algo inerente ao passar dos anos e do tempo sobre o corpo humano. Tratava a mim, ao meu irmão e ao meu primo como se fôssemos netos dela. Sempre tinha uma caixa de bombom para nos dar. Era uma só caixa que tínhamos que dividir entre nós, mas para mim era bom assim mesmo.
Era certeza encontrá-los na praia. A casa deles, branca com janelas azuis e varada ao redor da casa, ficava na rua da nossa. Cultivavam árvores frutíferas, o que tornava a casa muito agradável. Lembro-me de uma das vezes, ficar sabendo que eles iam chegar e avisei a minha mãe que iria ajudá-los a limpar a casa tomada por folhas secas e “pó de terra”. Quando avistei o carro vindo pela rua, corri para a casa deles, me dispondo logo a ajudar na limpeza. Acho que nem ajudei muito não, mas hoje vejo que foi mais uma atitude de demonstrar a minha alegria por eles terem chegado. Engraçado... crianças tem maneiras bem sutis de mostrar que gostam. Não é com presentes ou bens materiais... é sempre com sorrisos e uma alegria festiva que só os cães conseguem fazer igual. A casa, por dentro, demonstrava que os proprietários eram de idade: forro de madeira, móveis mais rústicos, cortinas e panos de mesa, jarros de louça ou porcelana. Tudo muito organizado e arrumado... eu consigo lembrar do cheiro da Maria Helena e do cheiro que tinha sua casa. Lembro da voz dela também...
Também era certeza que, ao visitá-la, ela nos ofereceria algum doce. Sempre alertava: “É sem açúcar, mas eu fiz com adoçante.” Ela era diabética mas sempre dava um jeitinho de comer um doce de pêssego, que é o que eu me lembro dela sempre oferecer. Eu nunca fui chegado, então recusava com a inocência e a sinceridade que só uma criança pode ter.
Numa dessas vezes, ela me contou que tinha um diário. Ela anotava tudo o que fazia durante o dia, incluindo a visita “dos meus meninos”. Segundo ela, o diário vinha sendo escrito a partir de uma certa idade e que ela já tinha preenchido um ou dois diários. Dizia, a Maria Helena, que era bom para a memória, para ter sempre as lembranças guardadas em algum lugar. Talvez toda aquele afeto que ela tinha por nós, se devia ao fato de que ela e o Sô Antônio não tinham filhos.
Quando meu avô adoeceu, eu tinha 11 anos... quase 12 e fui visitá-lo. O porteiro me barrou e não me deixou entrar por nada, pois a idade mínima era 12 anos. Fiquei do lado de fora, conversando com a Maria Helena e com o Sô Antônio, que também tinham ido fazer a visita. Fizeram-me companhia enquanto meus pais estavam lá dentro. Bem, o fato é que eles é que ficaram cuidando de mim enquanto meus pais estavam em visita e depois eles entraram.
Não sei quando aconteceu, mas a Maria Helena e o marido pararam de ir à praia e venderam a casa. Era estranho passar na frente da casa e ver outras pessoas ocupando. Era um misto de raiva com tristeza por não vê-los mais naquela casa, antes azul e branca agora em tons de rosa. E isso foi logo após a morte do meu avô e da minha avó, pelo que eu me lembre.
Aí fiquei sabendo que o Sô Antônio tinha desenvolvido um problema qualquer no trato urinário e, por isso, não podia mais dirigir as 10 horas de BH até São Francisco. Eu havia dito que Maria Helena escrevia no diário para preservar a memória, não é? Pois por uma ironia cruel, para não dizer hedionda, fiquei sabendo que ela tinha desenvolvido Alzheimer. Ironia cruel, uma senhora vivaz como aquela e que preservava escrita as memórias, ser acometida por algo que consome justamente as memórias. Se há algo de bom nisso, é o fato de que sua memória estava preservada em cadernos, mas ela mesma não poderia desfrutar mais daquilo. Seria como alguém ler esta história: pode entender, mas nunca vai sentir o que eu sinto.
Tenho para mim que Alzheimer é algo que tem estopim espiritual. Não sei o motivo desta doença assolar a Maria Helena, mas creio que ela tenha sofrido alguma tristeza profunda e gostaria de esquecer estas possíveis tristezas. Não se estão vivos ou não, mas prefiro não saber, pois seria muito triste vê-los... incapazes depois de tê-los visto tão ativos. Se algum parente porventura ler esta história, saiba que a escrevi de coração. Se algum parente vivo ler esta história, por favor, não a tome como exposição. É uma crônica de alguém que conheceu a Maria Helena e o Sô Antônio e que, por eles, tem afeto.
É também uma forma de preservar a memória destas duas pessoas de quem eu muito gostei. Deixo claro que não planejei escrevê-la. Simplesmente este simpático casal me veio à memória repentinamente e me sobreveio a vontade escrever sobre as MINHAS lembranças à respeito destes dois. Talvez tenha sido a Maria Helena, com aquele sorriso dela, que tenha me tocado o ombro e pedido que eu não me esquecesse dela...
* Imagem retirada de http://lostknightkg.deviantart.com/art/Old-couple-141774344 *
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