Muito boa noite, meus amigos que se
mantém despertos sob a luz da Lua que jaz lá no alto. Não vim para falar de
Lenora e tampouco para atormentar-lhes a alma, a mente ou ainda para atacar
alguma carcaça jogada ao chão... pelo menos, não agora.
Odara, aos 10 anos, era só mais um
dos milhares de pobres que disputavam cada metro quadrado de terra entre si e
com os ratos. Apesar da pobreza notória que contrastava com os poucos abastados
da Índia, Odara era feliz. A pele morena e os olhos amendoados, ornados com uma
maquiagem negra que realçavam seu olhar. Os cabelos negros cobertos com um
turbante tão colorido quanto as roupas simples que lhe cobriam todo o corpo,
eram quase como um reflexo de seu espírito imensamente alegre.
O garoto sempre carregava consigo um
instrumento que batizou de abharan, pois
era sua maior jóia, sua preciosidade. Abharana era feita de madeira tosca e
acabamento rústico, quase grotesco.
Odara gostava de sentar-se às margens do Ganges, em meio aos corpos que
boiavam e à imundície, para olhar os horizontes e as pessoas que ali se
amontoavam. Era como um alimento para ele, que gastava muitas horas e dias ali.
Seus pais não se importavam muito, mas não por maldade. Eles tinham outras seis
bocas para alimentar. Caso um filho desaparecesse, ainda que lhes doesse, seria
uma bênção.
Ainda que soubesse falar com certa
polidez, Odara não sabia ler ou escrever. Escola era algo para as castas de
brâmanes e ricos em geral. Entretanto, sua música parecia ser obra de um gênio
que passou anos em um conservatório. Provavelmente este fato se deve à pureza
com que a melodia era composta e a espontaneidade com que Odara dedilhava as
cordas de sua abharana.
Ele era dotado um pacifismo que
parecia inabalável e, portanto, era alvo constante de outros garotos . Creio
que importunar os pacíficos e os fracos seja algo que está latente nos
recônditos da alma de todo humano que povoa a Terra. A diferença consiste no
fato de que, em alguns essa tentativa de prevalência se manifesta com furor e
cativa estes espíritos fracos, que se apaixonam pelo sadismo recém-manifestado
e isto se torna hábito.
Certa vez, como de costume, Odara se
encontrava com os pés imersos na água do rio sagrado e dedilhava sua abharana
com destreza e até mesmo paixão. Eu podia ver em seus olhos e sentir em sua
aura, que ele queria confortar aqueles homens que choravam seus mortos e animar
as mulheres que lavavam suas roupas ali na margem. Ele não sabia o que fazia,
mas sentia que devia fazer aquilo. É a pureza de espírito que poucos tem. Um grupo de jovens se aproxima e cercam
aquele menino imerso em sua música. Ao perceberem que Odara não lhes deu
atenção, roubaram-lhe a abhara e partiram-na em duas partes, arrebentando as
cordas. Odara não reagiu, mas uma lágrima lhe caiu dos olhos. Aqueles jovens,
que mais pareciam filhos de asuras, começaram a rir de prazer com o que haviam
feito. Ainda esperavam que Odara reagisse de uma forma mais intensa ou mais
violenta, então o jogaram no chão e desferiram chutes violentos.
O garoto, pacífico como o próprio
Ganges, levantou-se com o sangue escorrendo-lhe pela boca. Seus olhar ainda
sereno, foi adornado com um sorriso leve, como se houvesse triunfado em uma
batalha e não quisesse demonstrar este orgulho. Em seguida, seus lábios
começaram a articular palavras que foram ditas em harmonia e soavam como música
ou poesia.
“Om
“Om
Om Bhuva Swaha
Om Bhargo Devasya
Om Shanti Om
Om Dhiyo Yo Nah
Prachodayat...”Aquele bando que agiu como as bestas de asura ficou sem reação. Somente entreolhavam-se, pois compreendiam as palavras mas não o seu significado. Odara pegou sua abhara quebrada e mergulhou lentamente no Rio Ganges. Ninguém jamais o viu sair. Dizem os gentios que o rio Ganges o levou em seus próprios braços. Outros dizem que o rio lavou o que restava de impureza em sua alma e, assim, Odara deixou o ciclo de reencarnações.
Aquela região recebeu o nome de Varanasi e dizem que, todos os dias ao nascer e pôr do Sol, ouvem-se as palavras de Odara, ecoando como mantra de paz aos homens.
* Imagem retirada da página “Humans of India” *
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