“Misericórdia. Um sentimento tão típico dos humanos e que,
contraditoriamente, é algo que lhes falta. Ganância. Outro sentimento
tipicamente humano. Volúpia, luxúria e paixão. Tudo isto também é comumente
humano! Os mortais tem por hábito, não à toda hora, compadecerem-se do
sofrimento alheio. Em contrapartida, o homem é também extremamente sádico...”
Não me recordo se estas palavras me foram ditas por um monge
cristão ou se por algum louco (sábio muitas vezes) que viveu nas ruas. Tudo que
sei é que guardo estas palavras comigo como se fosse um versículo da bíblia
sagrada . Lembrei-me destas palavras por resgatar uma parte humana após fazer
contato com ele...ele que, após alguns gestos, fez-me atingir um êxtase que só
os xamãs conseguem com suas ervas
alucinógenas.
Ele...Andrea, um italiano de pele clara, cabelos de um loiro
escuro, boca perfeitamente esculpida e vermelha. Os olhos negros eram dotados de um vazio que,
incrivelmente, brilhava...refletiam uma fragilidade e uma tristeza dignas de
pena. Mas, ao mesmo tempo, seu olhar era bastante sedutor, doce, quase
carinhoso. Em sua mão direita –pequena, branca e de dedos finos lindamente
desenhados – carregava um crucifixo em forma de anel. Sempre havia um cachecol
em seu pescoço, o que dava um ar elegante ao belíssimo Andrea. Seus olhos
pareciam ser sempre delineados por um fino traço escuro e seus sapatos sempre
bem lustrados.
Eu acabara de colocar os pés na rua. A Lua me parecia
especialmente grande e bela naquela noite. Um cristal de gelo vindo do céu
tocou meu rosto. Neve. Pura como uma criança, branca como minha pele, fria como
eu. Não muito à frente vi Andrea, que caminhava em sentido contrário ao meu.
Ele trajava as vestes que eu descrevi anteriormente e, com a habilidade que há
somente nos vampiros, pude observar e memorizar cada detalhe daquele jovem
portando uma mochila.
Naquele instante eu o escolhi. Naquele instante eu o desejei
para mim. Eu o escolhi, eu o desejei e eu o teria em minhas mãos! Tentei
acessar sua mente através da minha telepatia e, para a minha surpresa, foi
incrivelmente fácil conseguir. Deste modo descobri, através de suas
memórias, seu nome e algumas de suas
preferências. Passei a segui-lo por
sucessivas noites, encontrando-me “de forma casual” com Andrea e provocando
conversas que, com o tempo, foram ficando mais íntimas e com menos protocolos
sociais.
A cada noite ele revelava-se mais e mais, como se a palidez
de sua pele aumentasse gradativamente, revelando-me seu coração pulsante. De
alguma forma, apesar de relativa intimidade que possuíamos, os instintos de
Andrea pareciam alertá-lo de que algo estava errado, pois seus músculos encontravam-se sempre
rígidos e sua postura parecia dizer que
ele estava prestes a romper em fuga. Devo ressaltar que eu gostava de olhar em seus olhos. Eles
eram extremamente melancólicos e sedutores...quase que pedindo para que eu
amasse Andrea. Eu o olhava nos olhos e era como se Lacrimosa, o réquiem de Mozart,
ecoasse pelo ar e reverberasse nas construções ao redor e em nossos próprios
corpos. Não sei por quanto tempo eu conversei com Andrea. Tempo é algo que eu não me dou ao
trabalho de mensurar. Não sei quantas vezes senti compaixão, desejo ou quantas
vezes lhe afaguei os cabelos salpicados com flocos de neve parcialmente
derretida.
Aquele jogo não me cansava. Eu, sempre dissimulado, Andrea
frágil mas na defensiva de certa forma e ambos agindo com aparente
naturalidade... como se ele encontrasse sinceridade em mim e eu encontrasse
coragem nele. Entretanto, havia alguma paixão ali entre nós.
Uma noite, em que a Lua me pareceu mais brilhante e o céu
meio avermelhado, foi escolhido para que algo acontecesse. O vento soprava
forte e a neve ainda caía. A violência do vento e a suavidade da neve na mesma
cena...tão belo, poético e contrastante...
Meus passos, sempre suaves, mal marcavam a neve no chão. Eu quase flutuava. Era a hora em que eu, habitualmente, encontrava Andrea “por acaso” – mover-se rápida e silenciosamente tem imensas vantagens. – então pus-me a caminhar de forma despretensiosa, como se fosse um transeunte qualquer.
Meus passos, sempre suaves, mal marcavam a neve no chão. Eu quase flutuava. Era a hora em que eu, habitualmente, encontrava Andrea “por acaso” – mover-se rápida e silenciosamente tem imensas vantagens. – então pus-me a caminhar de forma despretensiosa, como se fosse um transeunte qualquer.
- Você novamente? – Andrea disse, com um sorriso leve no
rosto.
- Parece que você e eu estamos destinados a nos
encontrarmos. Isso não lhe causa estranheza? Por vezes isto me incomoda.
Encontramo-nos de novo no mesmo horário e no mesmo lugar.
- Causa-me estranheza, mas não repulsa ou paranoia ou o
menor incômodo. Coincidências da vida...já que estamos aqui, me acompanha em
umas boas taças de vinho? Tenho horário livre e sua companhia, de alguma forma,
se tornou parte da minha rotina. Meus pais tem um restaurante aqui perto.
- Bem, declinar do convite não seria legal, não é?
- Digo que não combina com sua aparência cavalheiresca. –
ele riu.
- Então vamos até lá!
Talvez estejam perguntando-se como diabos eu iria beber o vinho. Pois bem, eu não bebia. Tão somente bebericava, umedecendo os lábios sem ingerir uma gota sequer. Ao passo que Andrea dava grandes goladas e aquilo quebrava sua imagem de jovem signore. No restaurante de decoração rústica, sempre a meia luz, a calefação tornava o ambiente aconchegante. De certa forma, trazia à tona as lembranças seculares das tavernas que eu frequentava com Nikolas.
Talvez estejam perguntando-se como diabos eu iria beber o vinho. Pois bem, eu não bebia. Tão somente bebericava, umedecendo os lábios sem ingerir uma gota sequer. Ao passo que Andrea dava grandes goladas e aquilo quebrava sua imagem de jovem signore. No restaurante de decoração rústica, sempre a meia luz, a calefação tornava o ambiente aconchegante. De certa forma, trazia à tona as lembranças seculares das tavernas que eu frequentava com Nikolas.
Aquele salão
levemente aquecido e o vinho ingerido logo fizeram com que Andrea tirasse o cachecol, exibindo o pescoço
e as artérias repletas de sangue tomado pelo álcool. Aquilo me atiçou ainda
mais o apetite e a vontade de tê-lo. Caso eu fosse humano, provavelmente teria
salivado como uma fera diante de um pedaço de carne. Creio que meus olhos
delataram-me, pois Andrea ajeitou-se na cadeira como se fosse um cordeiro
acuado diante de um lobo faminto. Subitamente seu olhar tornou-se voluptuoso,
lânguido, além da embriaguez obviamente expressa. Penso que ele idealizou algo
bem...carnal em sua mente. Um sorriso me escapou dos lábios naquela hora.
Andrea parecia abrir um espaço para que eu o tomasse.
Depois de várias taças de vinho – e eu não ter esvaziado
sequer a primeira – disse a Andrea que o levaria para casa, pois ele estava
incapaz de caminhar sozinho. Houve, por parte dele, aquela resistência típica
dos alcoolizados, que creem sempre em sua sobriedade. No entanto, logo ele
cedeu à minha vontade.
Ele apoiou-se em meu ombro, enlaçando meu pescoço com seu
braço e assim começamos a caminhar lentamente, um pé após o outro. Seus passos
arrastados e cambaleantes marcavam a neve. O cachecol, somente jogado por cima
de seus ombros, dançavam ao sabor do vento. A face de Andrea estava ruborizada
devido ao álcool.
Chegamos em sua casa. Ele mal pode acertar a fechadura com
seus movimentos descoordenados e, com minha ajuda, ouviu-se o click do
destravar da porta. Girei a maçaneta dourada
da porta de madeira maciça com entalhes belíssimos e, tão logo a empurrei,
vislumbrei a sala. Uma gigantesca TV
cercada por 3 sofás modernos na cor branca e um tapete com motivos
árabes. Nos vértices das paredes, encontrava-se pequenas caixas de som –creio
que o nome seja Home Theatre – e um aparelho de som aparentemente caro.
Passamos por um vão aberto, ornado com gesso
formando ramas de alguma trepadeira. Eu, particularmente, achei de
péssimo gosto, mas sou conservador quanto à estética de construções. Este vão dava acesso ao corredor que, à
direita, via-se a sala de jantar com uma enorme mesa de vidro e cadeiras de
metal. Cozinha e toilette provavelmente localizavam-se no primeiro pavimento,
mas não me preocupei em ver. À frente, no corredor, havia uma escadaria que
dava acesso ao segundo pavimento onde, segundo o próprio Andrea, localizavam-se
os quartos.
- Meu quarto está na 3ª porta à esquerda.
- Sim, jovem signore! Eu o levo até lá, mas vamos com calma. – eu lhe disse e comecei a subir lentamente as escadas de madeira polida e lustrosa. Andrea ainda estava alcoolizado, mas já não cambaleava tanto.
- Sim, jovem signore! Eu o levo até lá, mas vamos com calma. – eu lhe disse e comecei a subir lentamente as escadas de madeira polida e lustrosa. Andrea ainda estava alcoolizado, mas já não cambaleava tanto.
Chegando ao quarto, fiz com que Andrea sentasse na cama para
que eu lhe tirasse os sapatos, o cachecol e o casaco, já que a casa era
aquecida. Logo em seguida, ele deitou-se e desandou a falar. Não tenho a mais
remota ideia do que ele disse. Pessoas alcoolizadas me irritam profundamente e
eu estava ali tão somente por ter outras intenções, que não a de ser “bom
samaritano”. Eu não faço caridade. Simplesmente estava de costas a admirar o quarto e ignorando o que aquele rapaz
dizia.
Andrea ficou mudo de repente. Olhei em sua direção e vi que
ele caminhava para o banheiro que havia ali no quarto – que era, para ser mais
preciso, uma suíte. Lá ele despiu-se e
lavou-se em silêncio absoluto, como se ignorasse a minha existência como eu
ignorara a sua há poucos instantes atrás. Meus olhos voltaram-se para a janela e vi,
através dela, a neve que caía em
pequenos flocos cintilantes e alvos. Andrea saiu do banho ainda com o corpo
meio molhado, com gotículas escorrendo pelo corpo, e jogou-se na cama nu como
estava. Suas pálpebras piscavam lentamente.
- Acho que vou acabar dormindo.
- E vai fazer isso mesmo com uma visita em casa? Isso não é
muito educado, signore. – eu ri – A menos que eu me deite com você e durma com
você, não o deixarei dormir.
- Como queira. Deite-se aqui. – ele deu de ombros e
afastou-se um pouco, dando-me espaço na cama. Sentei-me ao seu lado e mirei
seus olhos, seu corpo, atentei à sua respiração e ao som de seu sangue, que
parecia se oferecer a mim...era ali. Aquele era o local em que eu me saciaria.
Em um movimento rápido beijei os lábios de Andrea, que não fez a menor menção
de descontentamento ou desaprovação. Então eu o mordi, fazendo com que o sangue
escorresse pelo queixo e parte formando
uma pequena poça no interior de sua boca. Bebi o sangue inundado com o álcool
do vinho. Uma leve sensação de torpor tomou meu corpo não-morto. Com a mordida,
Andrea esbravejou.
- O que diabos está fazendo?!
- Estou me divertindo! – eu sorri um sorriso cínico e
perverso, certamente, e fiz minha mão deslizar até sua genitália.
- Pare com isso! – ele bradou e tentou socar-me o rosto.
- Tolo! - eu bloqueei
o golpe com uma de minhas mãos, dominando-o em seguida – Você não tem a menor
chance de conseguir me ferir.
Com a minha mão que ainda estava livre, arranhei-lhe do
pescoço ao umbigo. O sangue começou a brotar em microgotas. Minha língua lambeu
aqueles ferimentos e o gosto era único. Mais e mais arranhões, mais e mais
mordidas, pequenos cortes . Andrea se contorcia e algumas lágrimas lhe
escorreram pelo rosto. Por fim, a simples ameaça de tocá-lo ou beijá-lo
causava-lhe pânico. Eu adorava ver o sangue brotar em seu corpo retorcendo em
dor e o medo em seus olhos.
A Lua parecia minguar juntamente com a vontade (ou até mesmo
a própria vida) de Andrea, que era fraco para a dor e já implorava para que eu
acabasse com aquilo tudo.
- Bem, eu o libertarei.
- O-ob-obrigado! Leve
o que quiser e me deixe em paz! Eu imploro pelo que há de sagrado nesse
mundo!
- Levar...o que eu quiser?
- Sim. O cofre está atrás da geladeira e a senha é...
- Eu não preciso da senha. Cofre atrás da geladeira? Não sei
se isso é genial ou ridículo...apesar de que cofres atrás de quadros é algo bastante clichê, não
acha?
Cheguei na porta do
quarto, como se eu fosse realmente descer as escadas, e pude ouvir Andrea
suspirar de alívio. Tanto o alívio da dor como o alívio por eu deixá-lo. Ri
comigo mesmo, tentando imaginar o que
Andrea pensava que eu era. Talvez acreditava que eu fosse um ladrão comum.
Imaginar é algo que pode ser tão interessante quanto descobrir tudo por
telepatia. Dei meia volta e o encarei, ele ainda deitado na cama e com o olhar
perdido em algo que eu não procurei saber o que era. Talvez tentasse escapar da
dor ou esquecer o que vivenciara.
- Você quer que eu o deixe em paz?
- ....
- Eu estou perguntando! Você quer que eu o deixe em paz? –
Indaguei, olhando-o nos olhos e com a voz aveludada.
- Sim, s-s-sim! – ele respondeu, gaguejando e com a voz
embargada.
- Vou dá-lo a paz. – Beijei-lhe a boca e agradeci – Obrigado
pela diversão!
Mordi seu pescoço fazendo o sangue jorrar em minha boca e,
com a força descomunal que me é natural,
rasguei-lhe o peito lentamente até que o seu coração se tornasse visível
ainda pulsante. Eu ouvia Andrea gritar desesperado e agonizante. Senti prazer e
satisfação.
Andrea queria que eu o deixasse em paz e eu o deixei. Sou
misericordioso e o livrei das moléstias e das dores deste mundo. Eu lhe dei a
paz eterna.
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