segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Inanç


Os cabelos negros, lisos, olhos negros e a pele morena lhe davam um belo aspecto, mas o que mais marcava era o seu sorriso simples e perfeito. Era algo tão...contagiante que ofuscava qualquer outra coisa que ousasse tentar sobrepor aquele brilho. Devido às suas qualidades, aquele garoto era conhecido sob vários nomes, mas o seu nome real era Bishr. As garotas o tratavam por Hasan, devido aos atributos fisicos e todos os outros costumavam chamá-lo de Kareem por ser o tipo de pessoa que todos querem por perto.

Bishr, apesar dos seus 12 anos, era um exímio guerreiro que sabia muito bem usar sua kiliç e poderia integrar a lendária tropa de cavaleiros-arqueiros turcos, pois era hábil com o cavalo e com o arco. Mesmo assim, ele ainda era uma criança, então gostava de correr sem destino pelas belas paisagens, que ainda possuiam alguns vestígios da antiga Constantinopla, passando por igrejas e mesquitas, vendo todo o tipo de etnia que habitavam aquele império.

Em uma dessas cavalgadas solitárias, Bishr encontra uma garota de olhos castanhos profundos e a densa cabeleira negra escondendo parte do rosto. Ela olhava timidamente escondendo-se atrás de um dos muros de Ayasofya enquanto ele galopava à toda velocidade, tendo tempo para admirá-la por alguns instantes. Estes poucos instantes fizeram com que Bishr tivesse mais um motivo para passar por ali, esperando encontrá-la novamente, como de fato ocorreu. Era sempre o mesmo: ele passava, ela olhava timidamente mas não dizia nada e ele ia embora, sumindo em meio ao tom púrpura do crepúsculo.

Diferente do que fazia normalmente, Bishr resolveu cavalgar durante a noite pois o ar estava fresco e o céu muito limpo. Obviamente, ele passou pela Ayasofya esperando encontrar aquela a quem ele chamou de Leena por causa do seu olhar. Ao se aproximar, viu um grupo de soldados que cercavam aquela estranha que ele aprendeu a estimar. Riam alto e ela, com lágrima nos olhos, implorava por algo e parecia extremamente desesperada e em choque, pois estava estática apesar de parecer correr algum risco. Bishr se enfureceu quando viu que rasgaram as vestes daquela garota e a dominaram abrindo-lhe as pernas. Não era por ser com a "sua" estranha, mas por ser mulher e pelo ato ser praticado por guerreiros que deveriam ser honrados. Ouviu-se o som de uma flecha cortando o ar e, em seguida, mais sete rasgaram os céus perfurando pescoços, olhos, peitos e ouvidos. Os soldados sobreviventes nem tiveram tempo de reagir e só puderam gritar por causa da dor lacinante.

- Vocês são a vergonha deste povo! Allah observa todos os seus atos e sofrerão por causa deles. Allah abençoou as minhas flechas e elas foram um instrumento de sua justiça. Infelizes! Saiam daqui mesmo que rastejando por sobre estas pedras para fazer com que o Haraam de você seja perdoado pelo Altíssimo!

A estranha estava encolhida, humilhada e com muita vergonha.

- Não se preocupe, Leena. Não vi nada que não pudesse ver. Venha e pegue esta gömlek para se cobrir. Prometo que não vou olhar!

Leena vestiu aquela túnica branca e sentiu-se reconfortada pela gentileza daquele árabe porque era diferente daqueles que ela viu alguns instantes antes. Bishr desceu do seu cavalo branco, estendeu um tipo de tapete ali na grama e a convidou para sentarem-se. Comeram e conversaram durante muito tempo como se fossem amigos íntimos.

- Me chamo Bishr. Vou ser um grande guerreiro um dia!
- Mas você me parece muito jovem. Qual a sua idade?
- Tenho 12 anos...
- É...esse rosto infantil me fez imaginar algo desse tipo. Eu tenho 14 e me chamo Anastasia. Estou surpresa com sua habilidade como guerreiro... você me salvou daqueles...esqueça! Spasibo!
- Você é russa, não é?
- Sim. Seu povo massacrou o meu e eu vim parar aqui...tenho saudades da Mãe-Terra. - ela começa a chorar.
- Não entendo os motivos desta guerra, mas faço parte dela e vou lutar sob a bandeira da lua crescente.
- Não falemos disso! Eu quero lembrar de você como alguém a quem eu devo a vida.
- Um guerreiro deve ser honrado e eu só fiz o que deveria ser feito. Onde você vive, Anastasia?
- Eu fugi do lugar em que eu vivia. Não vou me sujeitar aos maus-tratos! Prefiro morrer de fome!
- Venha! Vou lhe arrumar um abrigo!
- Mas onde....
- Somente venha!

Bishr montou no cavalo e Anastasia ficou em pé ao lado, sem esboçar reação alguma.

- O que espera, Leena?
- Que você vá para que eu lhe siga, Malik. - Anastasia, pelo tempo naquela terra, tinha algum vocabulário turco.
- Vou te levar em meu cavalo.
- Mas eu sou uma escrava...não posso...

Ele estendeu o braço magro, mas muito forte e a puxou para que ela pudesse montar no cavalo. Anastasia se encantou novamente com aquele sorriso e abraçou Bishr, que fez o cavalo disparar. Ao longe, via-se um espectro branco, sob a cúpula celeste iluminada, correndo por entre os campos.
Chegaram ao seu destino. Uma casa pequena mas muito confortável, abrigada por entre as montanhas. Lá, Bishr deixou Anastasia, avisando-a dos perigos do lugar mas deixando claro que aquela casa, feita por ele, era bem respeitada e por isso, sua estrangeira estaria segura.

Todos os dias ele se viam, desenvolvendo um amor intenso e apesar da pouca idade, ambos viviam os horrores da guerra, o que lhes concedeu uma preococidade extrema. Bishr era muito carinhoso e sabia ser delicado, ainda que tivesse a frieza para matar, como havia feito com os guerreiros na noite em que salvou Anastasia. Ele sempre levava roupas e comida para aquela escrava que ele aprendeu a admirar por sua força e por sua fé mantidas mesmo em
uma terra estranha.
Quando estavam juntos, cada um orava à sua maneira, respeitando os limites religiosos um do outro. Ela aprendeu sobre Allah e ele, sobre Cristo. Ambos admiravam os mosaicos bizantinos que ainda restavam em Istambul e gostavam de cavalagar ao ar livre, sempre rindo e brincando, como crianças que eram.

Incrível como ela se sentia protegida ao lado dele...uma criança que, aos 12 anos, provou ser mais honrado do que todos os homens que Anastasia havia conhecido antes. Nem mesmo os bravos kazaki haviam causado tanta admiração e tanto amor quanto aquele pequeno árabe constituído de, antagonicamente, a força bruta e a delicadeza. Ele, estava impressionado com a força e com a coragem daquela estrangeira que, apesar de todo o sofrimento, não perdeu a ternura no olhar.

Com o tempo, a guerra foi ficando mais intensa e os perigos se tornavam cada vez maiores. Anastasia já não mais saia sem Bishr, não por medo, mas porque o próprio estava sempre por perto. Apesar de se sentir sufocada as vezes, ela gostava dessa proteção que lhe faltou ao longo da vida por viver a guerra desde pequena.

Bishr e Anastasia cavalgaram para uma floresta relativamente densa e, como de costume, buscaram um lugar para a habitual refeição. Bishr encontrou uma clareira e lá deixou Anastasia para preparar o tapete com os alimentos que carregaram. Ele adentrou ainda mais a floresta para buscar alguma lenha que encontrasse para fazer uma fogueira, pois sabia que sua querida Leena adorava chá.
Ela ouve os cascos dos cavalos e canções que há muito não ouvia, observa as shashkas reluzindo enquanto uma tropa caminha, arrastando Bishr desacordado.

- Idiota! Não acredito que ele ousou enfrentar estes kizaki! Malik... - as lágrimas rolam.
- Esse idiota não vai lhe fazer mal, garota. Nós não deixaremos vivo um mouro sequer que ouse fazer mal a um dos filhos da Mãe-Terra. Já tomaram nossa terra e não deixaremos que tomem a vida de nosso povo!
- Vocês são o orgulho do nosso povo, mas este mouro é valoroso tanto quanto os lendários kizaki. Ele tem me protegido e lutado contra seu próprio povo.

Deixem-no aqui e eu cuidarei dele!
- Despertem este soldado! - fala o líder da tropa. Seus subordinados obedeceram, estapeando Bishir até que este acordou.
- Leena... o que está...
- Malik, você é um grande guerreiro, mas foi tolice enfrentar os kizaki.
- Você os conhece?
- Eles são os melhores guerreiros da minha terra.
- Chega! Vamos ver o quão valoroso você pode ser, mouro. - Um deles retira o Corão da bolsa de Bishr.
- Corte este seu livro ao meio ou lhe arrancaremos dedo por dedo.- Pois que cortem logo a minha cabeça e esquartejem meu corpo, para que os animais o comam, pois jamais vou praticar ato tão repugnante contra Allah.
- Não podem ser kizaki! Eles não são assim...não são covardes! - Anastasia grita.
- É a guerra, garota! Eles tentaram nos forçaram a fugir de nossas terras. Agora nos vingaremos.

Anastasia, em um impulso, correu na direção de um dos soldados e tentou acertá-lo, mas sem sucesso.

- Já que ama tanto este mouro, você vai ficar no lugar dele e assim veremos se ele é tão valoroso quanto nos disse.

Os homens libertaram Bishr e amarraram Anastasia, revelando um tipo de sadismo e crueldade latentes.

- Pois bem, mouro. Lhe darei outra chance de cortar seu livro ao meio, mas desta vez, o que está em jogo é a vida desta garota.
- Leena... - ele olha aquela garota completamente dominada e sente-se furioso.
- Malik, me ajude! Já o vi lutar contra vários e derrubá-los todos. Faça isso mais uma vez!
- Está ouvindo? Ela implora por ajuda mas você viu que não tem chance contra todos nós. Corte o Corão ao meio e ela será libertada.

Bishr permanece calado, como se estivesse a pesar e a pensar naquela situação.

- Façam dela o que bem entenderem! Ela é só uma escrava. - Bishr deu de ombros.
- Você quem escolheu... - os soldados riram alto e com uma satisfação incontida.
- Malik! - Ela não conseguiu esconder a surpresa mas manteve a esperança de que fosse ser salva.

Os rasgaram a túnica de Anastasia, revelando seu corpo.

- Ora, ora...há muito não vemos algo tão belo, não é homens? - Olham como lobos prestes a atacar.
- Mouro, tem outra chance de salvá-la. Basta fazer o que queremos.
- Já disse que ela não me importa. Não vou renegar Allah por causa de uma mulher! Quando morrer, terei 75 delas além das que poderei ter em vida. Por que me preocupar com uma? A minha fé está acima de qualquer coisa e sei que serei recompensado por isso.

Os solados, furiosos com aquele garoto extremamente firme e fiel, resolvem ampliar o jogo. Atacam Bishr e o amarram, fazendo com que ele olhasse diretamente para sua Leena.

- Agora você deverá decidir por sua vida, pela vida da garota e ainda assistirá a tudo o que acontecer. Vamos ver o quanto você suporta. Homens, escolham à vontade!

E aquela cena se tornou a visão da bestialidade. Os corpos das duas crianças foram violados com violência. Anastasia gritou mas ao ver o doce olhar de Bishr, sentiu-se reconfortada pois percebeu que ele se importava com ela mas que nada o faria renegar a sua fé assim como ela faria caso estivesse em seu lugar.

- Leena, ore para que Cristo resgate sua alma! Nossos corpos perecerão, mas nossos espíritos não morrerão. Você já suportou muito nessa vida, então suporte mais este momento terrível.
- Malik... - Anastasia não conseguiu dizer nada, pois a dor fez seu coração parar.
- Ah...que pena! Ela não aguentou muito e eu não me diverti o suficiente. Mouro, agora você é todo nosso. Você já é homem entre as suas pernas, mouro! - Um dos soldados passa a língua nos lábios.

- Agora vejo porque aquela traidora o amava tanto - sarcasmo e escárnio.
- Limpe sua boca imunda! Não me verão implorar, chorar ou gritar, seus infiéis! Allah sabe o que faz e eu acredito nele.
- Peça-o para salvá-lo então - Os russos debocham e riem.

Bishr começa uma oração em árabe:

-"Allah, não consintas que eu seja o carrasco que sangra as ovelhas, nem uma ovelha nas mãos dos algozes. Ajuda-me a dizer sempre a verdade na presença dos fortes, e jamais dizer mentiras para ganhar os aplausos dos fracos. Meu Allah! Se me deres a fortuna, não me tires a felicidade; se me deres a força, não me tires a sensatez; se me for dado prosperar, não permita que eu perca a modéstia, conservando apenas o orgulho da dignidade.
Ajuda-me a apreciar o outro lado das coisas, para não enxergar a traição dos adversários, nem acusá-los com maior severidade do que a mim mesmo.
Não me deixes ser atingido pela ilusão da glória, quando bem sucedido e nem desesperado quando sentir insucesso. Lembra-me que a experiência de um fracasso poderá proporcionar um progresso maior. Ó Allah! Faze-me sentir que o perdão é maior índice da força, e que a vingança é prova de fraqueza. Se me tirares a fortuna, deixe-me a esperança. Se me faltar a beleza da saúde, conforta-me com a graça da fé. E quando me ferir a ingratidão e a incompreensão dos meus semelhantes, cria em minha alma a força da desculpa e do perdão. E finalmente Senhor, se eu Te esquecer, te rogo mesmo assim, nunca Te esqueças de mim!"

Então, Bishr fechou os olhos, o tórax parou de se expandir e os membros, antes rijos, se tornaram flácidos. Os homens amarram o corpo de Anastasia ao de Bishr, fazendo a fronte dos corpos se tocarem e escreveram nas costas de Anastasia "aqui jazem Malik e Leena: o mouro e a traidora". Em um último ato de violação e afronta, amarram os membros de Bishr como se eles estivessem pregado na cruz.

Os corpos perecem no tempo...

Quando os cânticos ressoam pelas mesquitas e convocam para a oração, dizem que sempre aparece um belo garoto sorridente, que se curva para orar. Durante a noite, nas vilas mais distantes, mulheres e crianças dizem ver um cavalo branco montado por um garoto-guerreiro de trajes de luz galopando por entre os campos e as montanhas. Uma menina diz que o viu de perto seu sorriso tranquilizador e jura que o ouviu dizer:

"Leena, sempre estarei por perto. Allah está ao meu lado e eu ao seu parar te proteger"

O fantasma iluminado desparece no horizonte, sob a luz celestial.



*A oração feita por Bishr é uma oração árabe e não é de minha autoria*

2 comentários:

  1. Adoro ler o que escreve Matti, sou sua fã... espero sinceramente, algum dia, ver uma obra sua... Bjnhuss e boa semana!

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  2. Oieee Matti, olha eu aqui denovo! Entonnn non problems!!!

    Meu mail é byleona@gmail.com

    Bjnhusss
    Dany

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