terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O Mundo Nanquim de Ikky

Ikky nasceu em um dia invernal de muita neve. O jardim havia sido envolvido em uma grossa camada de neve e somente um roseiral ainda mantinha-se de pé com seu carmesim ornado por neve. A única alegria naquela neve toda, era justamente o roseiral, assim como Ikky era a única alegria de sua mãe naquele dia pavoroso: o marido a abandonara. Mas creio que toda a tristeza da partida do marido tornara-se ínfima, pois aquele rosto branco adornado por cachos loiros era a felicidade suprema.

Sr. Lucca, avô de Ikky, era um desses velhos legais que estão sempre alegres e dispostos a fazer bagunça. Ensinara ao neto o prazer da leitura e das artes em geral e Ikky, como que se tomado pela empolgação do avô, mostrou-se um exímio artista. Ikky aprendeu a ler e a escrever aos 5 anos. Nada prodigioso. No entanto, era algo prazeroso ver aquela criança com a cara enfiada em livros e pinturas todo o tempo e como seus olhos cintilavam – vivazmente- enquanto desenhava. “Seu” Lucca presenteou o neto com uma caneta tinteiro e 13 frascos de tinta nanquim. A princípio ele guardou aquele estojo de madeira como uma relíquia, mas com o passar do tempo, aprendeu a usá-la como se fosse uma extensão de seu corpo.

Ikky passava horas rabiscando as folhas em branco, como se fosse o próprio Criador, deitado no chão e com um sorriso de satisfação, apesar do olhar perdido. Fazia traços curvilíneos e levemente disformes...traços de quem tem a mente “avoada” e a imaginação fértil. Talvez a sua espiritualidade se refletisse em seus desenhos... zooantropomorfismos aos montes. Dríades, nereidas, sereias, ninfas, dragões, alraúnes...belíssimos demônios de cabelos brancos.

Todos nós temos alguma válvula de escape...algo que nos faz fugir da realidade. Mas Ikky...Ikky moldava sua realidade em preto e branco. Curvas negras no papel branco formavam belas mulheres levemente medonhas. Chifres galhudos saiam da cabeça de um jovem de olhar vazio, florestas densas donde saiam lobos cobertos por folhas, barcos que velejavam o cosmo. Oras, se você espera que em algum momento desta narrativa os personagens criarão vida e sairão do papel, estão redondamente enganados. Hmm... não diria redondamente, mas estão enganado. A vida do mundo de Ikky era externalizada, monocromática e curvilínea e incompreensível para alguns. Muitos tomam por tolice ou perda de tempo. Outros veem aquelas criaturas fantásticas e, em seu âmago, sentem que fazem parte daquele mundo...esquisito.

Alguém aí já criou seu próprio mundo? Hmm...creio que isso não seja permitido a todos. O universo tem suas leis de equilíbrio. Aqueles que tem o poder de criar mundos, sofrem tantas perdas e dores...e isto é o que se torna combustível. Como se esta vivência de dores, angústias e alegrias, fosse o Sol que aquece o corpo e a Lua que aquece os sentimentos.

Ikky é um destes garotos perdidos que se encontra em algum momento na vida: ele parece sempre olhar para o nada e parece sempre pensar em nada. No entanto, a verdade é que Ikky olha para tudo e pensa em tudo e nestes momentos seu mundo é construído. O tempo de Ikky é mensurado diferentemente do tempo do resto da humanidade.

Talvez por sua natureza...indiferente, é que Ikky tinha poucos amigos. Para melhor explicar, diria que “o homem não sabe nada dos planos de Deus”. Apesar de ter quem admirasse sua obra, poucos poderiam entendê-la. Mas isso não lhe era importante...não buscava reconhecimento ou compreensão. Em sua possível insegurança, era seguro de si e buscava expressão somente.

O tempo passou e Ikky amadureceu, mas não mudou. Não deixou seu mundo e também não deixou que este se esvanecesse. Ao contrário, tornou seus traços mais firmes e mais vistosos e percebeu que a caneta era uma extensão de si...percebeu que o nanquim, mais do que uma tinta, era o fluido vital que corria dentro de sua alma. A ausência de cores não denotava a tristeza que seu rosto aparentava. A “monocromatia” de seu mundo era tão somente a dualidade que todo ser vivo carrega. A “monocromatia” de seu mundo denotava aquele tipo de beleza tão simples, que é ignorada pela maioria e percebida por poucos


O certo, meus caros, é que pessoas como Ikky passam uma ínfima parte da vida preocupados em receber a compreensão alheia. Pessoas como Ikky rapidamente dão-se conta de que o seu mundo é tão especial, que somente pessoas especiais são capazes de vê-lo e, deste modo, seu mundo está protegido de gente comum. 

Aos que são como Ikky, não preocupem-se em ser como os outros. Eles são gente comum, vulgar...dispensável. Aos que são como Ikky, valorizem-se! Valorizem seu mundo e sua dita estranheza. São através de seus olhos e mentes, que outras pessoas podem ver o fantástico e esquecer do marasmo do mundo físico.


*Imagem retirada de http://trustahope.deviantart.com/art/lost-boy-108592704 *

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