sábado, 18 de agosto de 2012

O Devorador de Anjos - Parte II


Ele, em toda aquela conversa, revelou-se um amante da história humana e de mitologia em geral. Falava-me de germânicos, helênicos, fenícios, hebreus, babilônicos e celtas. Falava de Lilith, Caim, Baal, Mephisto, Emanuel, Miguel, Javé, Odin, Afrodite, Ragnarok, Gilgamesh e Apocalipse. Deu-me nome de demônios e anjos separados hierarquicamente. Nesse meio tempo, tive que negar sorvete, chiclete e salgadinhos em geral, dizendo que não estava com fome. Ele achou estranho, mas não fez um interrogatório e sugeriu que sentássemos em algum banco para conversarmos. Escolheu o banco mais longe possível -  isto não me causou surpresa, visto que ele parecia não gostar de multidões – e lá ficamos por algum tempo, conversando tranquilamente.

Enquanto estávamos ali sentados e eu ouvia sua voz serena, mas agoniada de alguma forma, percebi o quão frágeis podem ser os mortais. A fragilidade de seu espírito e de sua mente, a consciência de sua vulnerabilidade, a morte e a dor que sempre se abate sobre eles. O medo da moléstia, do tempo que se esvai como um monte de areia ao vento, de perder alguém que se ama...tudo isso cai com um peso enorme sobre ombros humanos. Alguns suportam, alguns superam e outros tantos desistem. Vendo sob esta ótica, a imortalidade e as restrições que sofro como vampiro, me pareceram pífias ante toda a agonia que um mortal vive. 

Relembrei um pouco de minha vida mortal e o quanto eu, apesar sempre ter ido atrás de algo perigoso, sofria com fome, sede ou como vivi muito tempo sem conforto algum. Acho que passei a admirar um pouco os mortais, mas sem deixar de tratá-los como meus brinquedos.

Aquiles falava incessantemente e aquilo, às vezes, me irritava muito mas eu via suas mãos apertando uma a outra, num gesto de extremo nervosismo. Era como se cada palavra lhe estocasse o peito e o corpo se contraísse em dor. Entretanto, eu o ouvia com atenção e até algum fascínio sobre a sua forma de ver a vida...em como ele alternava euforia e depressão em questão de minutos. Não tinha conhecido, até então, alguém assim. Subitamente, Aquiles levantou-se.

- Fiquei aqui falando esse monte de bobagens e esqueci de comprar a fantasia para a minha irmã!
- Fantasia?
- É....amanhã é halloween, não se lembra? – ele olhou, meio incrédulo.
- Ah...não sou muito atento à essas coisas. Mas sua irmã quer fantasia de que?
- De anjo. – o seu tom de voz soava como “ela está cometendo um erro”.
- Hmm...acho que a última coisa que condiz com um halloween, é um anjo.
- Você tá certo. Mas a festa é dela, a fantasia é dela e ela só tem 9 anos mesmo, então deixa ela.
- Verdade. Você pensa em comprar o que, exatamente?
- Uma túnica rosa e um par de asas. A auréola minha mãe vai fazer.
- Então vamos parar de conversa e vamos logo nessa loja pra você comprar essa fantasia.
- Tem certeza de que quer me acompanhar nessa? Vai ser um saco, porque eu demoro pra escolher roupas em geral.
- Estamos perdendo tempo! – eu dei um sorriso disfarçado e saí andando.

Entramos na loja e ele começou a vasculhar por todas as prateleiras e cabides. Máscaras de bruxa, caveiras, ghouls, lobisomem, Frankenstein, presas, foices, aranhas, morcegos e uma capa de vampiro como aquela imortalizada por Bela Lugosi. Humpf! A imaginação humana consegue ser bem ridícula e clichê. Aquiles selecionou algumas peças que julgou serem úteis, inclusive uma túnica lilás, com algum brilho. Para compor a fantasia, faltavam justamente as asas de anjo. Ele procurou por toda a loja e, como não encontrou, pediu ajuda à vendedora. Ela prontificou-se a buscar alguns modelos, que não ficavam em exposição para evitar danos.

Logo a vendedora desceu as escadas em caracol, com vários pares de asas de tamanhos e cores variadas – sim, a loja teve a boa ideia de fugir do clichê de asas brancas- e as dispôs sobre um balcão de vidro espesso.

- Temos estes modelos, garoto.
- São todos muito bonitos! – Aquiles elogiou – Mas eu preciso das asas brancas.
- Então sinta-se a vontade para olhar estes pares! Pode experimentar, se quiser, para ver o peso delas e quais delas tem o suporte mais confortável.

Aquiles decidiu experimentar todas as asas, desde as mais leves e menores às maiores e mais pesadas. Eu estava perto, tão somente o observando fazer as compras. A princípio, ele tratou aquilo como uma obrigação, porém conforme ia escolhendo, pude ver em seus olhos um tipo de alegria infantil...talvez um desejo de ter mesmo aquelas asas para que pudesse voar pra algum lugar.

- O que acha destas, Maxim? – ele indagou. Quando olhei para o lado, vi Aquiles com asas enormes arqueadas para baixo, chegando à altura dos joelhos. As penas muito alvas e bem costuradas ocultavam a armação em que foram atadas. Tinha um volume considerável, mas sem exageros e tudo foi feito com tanto esmero, que quase pude crer que aquele par de asas havia sido arrancada de um anjo.

Meus olhos reluziram com aquela cena. Aquiles, de roupas pretas e um crucifixo pendendo sobre o peito, usava aquele belo par de asas...o conjunto era primoroso. Aquilo era tipicamente gótico: tinha algo de sagrado naquela figura e, ao mesmo tempo, algo de heresia, blasfêmia ou até mesmo um sacrilégio...não sei ao certo.

- Um anjo.... – eu disse.
- Anjos são criaturas perfeitas. – ele respondeu.
- Perfeição pode ser algo bem relativo e, para mim, você está perfeito.
- Obrigado, mas não posso levar estas asas. Vou levar as menores porque são mais confortáveis para a minha irmã.
- Eu te dou de presente. Pegue aquele par para a sua irmã e leve este par para você.
- Não posso aceitar...eu nem te conheço, não somos amigos...por que quer me comprar estas asas de presente?
- Somente aceite o meu presente. Me diverti bastante hoje com você e é uma forma de agradecer por isso. Encare como uma troca de presentes.
- Mas...
- Se você não quiser, jogue na lixeira mais próxima depois que eu for embora. – uma falsa rispidez em minhas palavras. Eu tinha que fingir indignação, não é?
- Tá bom, tá bom! Eu aceito!

A vendedora colocou tudo em uma sacola e as asas em uma capa como essa que se usa para guardar terno. Saímos pelo estacionamento do shopping, que já estava por fechar. Aquiles olhou para o céu noturno, parou repentinamente e me chamou.

- Maxim, pode me fazer um favor?
- Claro! Diga o que quer.
- Eu vou colocar estas asas e quero que você tire uma foto minha com o meu celular. Pode fazer isso? Mas quero em um lugar mais afastado um pouco. Não quero um intruso saindo na minha foto. – ele riu.
- Farei com prazer! – Tirei as asas daquela proteção e ajudei Aquiles a colocá-las, enquanto fomos para um lugar com menos transeuntes (que já eram poucos àquela hora da noite).
- Aqui. Este lugar estar perfeito e estes arbustos vão ficar legais como segundo plano nessa foto. – Aquiles, com este comentário, me fez pensar que era habituado com fotos ou que, ao menos, tinha bom gosto para elas.
Olhei para o alto e vi que a lua amarelada estava em um ângulo bom.
- Aquiles, você se importa se eu tentar algo?
- Não. Tire esta foto primeiro e depois eu sigo sua sugestão. – Tirei a foto que, de fato, ficou boa como ele disse que ficaria.
- Agora venha para o lado de cá, Aquiles. – eu o fiz andar para a direita, alinhando-o com a Lua -  Vou tirar esta foto sob um ângulo diferente.

Idealizem, vocês, a cena: Aquiles com o seu traje negro, um crucifixo prateado pendendo sobre o peito, as asas brancas e, atrás de sua cabeça, a Lua amarelada. Uma auréola perfeita, semelhante àquelas presentes nas imagens sacras bizantinas. Aproximei-me de Aquiles e lhe mostrei a foto.

- Ficou perfeita! Obrigado, Maxim! Ficou melhor do que aquela anterior!
- Eu tenho bom gosto, não é? 
- Excelente gosto. Mas o modelo também conta muito nesta foto. – ele disse, rindo.
- Isso é um fato, Aquiles....

Eu interrompi a minha fala. Me perdi naquela imagem do garoto com asas de anjo e no cheiro do sangue que circulava em seu corpo. Fome? Não, eu não tinha fome. Eu sentia algo semelhante ao que os mortais chamam de “tesão”.
Lentamente me aproximei de Aquiles, que me olhava sem reação e lhe enlacei a cintura com o meu braço esquerdo. Com o direito, segurei-lhe a nuca e aproximei minha boca de seu pescoço.

- Maxim, o que está..... – eu interrompi sua fala quando minhas presas lhe penetraram a carne branca. Ingeri cada gole de seu sangue quente e repleto de memórias, imagens e de emoções. Uma de suas lágrimas caiu em minha mão e as minhas caiam em suas roupas e no chão, tingindo-os de vermelho. Aquiles chorava sentindo a dor da minha mordida e, talvez, por pressentir a morte se aproximar. Eu me encontrava em dúvida: transformá-lo em vampiro ou não? Ele seria um vampiro belíssimo mas extremamente propício a enlouquecer, pois sua mente e seu espírito eram frágeis. Dar poder para uma mente fraca, é atirá-la à insanidade.

Seu coração cessou. Meu êxtase cessara no mesmo instante. No rosto de Aquiles ainda rolava uma lágrima. No meu rosto, várias lágrimas desciam. Senti um tipo de culpa por destruir algo tão belo e puro, apesar de humano...ele era tão frágil que por diversas vezes senti vontade de protegê-lo.  Deixei seu corpo, ainda alado, encostado em uma árvore. Certamente parecia um anjo repousando em sua placidez, ternura e beleza celestial.


“Creia-me, meu anjo, que sinto causar sua ruína!
 Eu sou aquele que apaga as estrelas do céu,
 Eu sou aquele que derrama sangue inocente,
 Eu sou aquele que vive da vida alheia

 Creia-me, meu anjo, que eu o amei!
 Eu sou aquele que traz a morte junto ao amor
 Eu sou aquele que eterniza a beleza e faz
 Desta beleza uma foice que ceifa cabeças

 Creia-me, meu anjo, que derramo lágrimas de sangue!
 Creia que estas lágrimas são a sinceridade de uma
 Criatura que ludibria e conquista pessoas ao léu. 

 Creia-me, meu anjo, que estas lágrimas vermelhas
 São tão doloridas quanto os meus dentes sendo 
 Cravados em seu pescoço frágil e macio.

 Creia-me, meu anjo, que seu sangue está em mim
 Creia-me, meu anjo, que sua memória esta em mim
 Creia-me, meu anjo, que seu sentimento está em mim
 Creia-me, meu anjo, que juntamente com a vida que se foi, foi também uma  parte de mim."

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