Ele, em toda aquela conversa, revelou-se um
amante da história humana e de mitologia em geral. Falava-me de germânicos,
helênicos, fenícios, hebreus, babilônicos e celtas. Falava de Lilith, Caim,
Baal, Mephisto, Emanuel, Miguel, Javé, Odin, Afrodite, Ragnarok, Gilgamesh e
Apocalipse. Deu-me nome de demônios e anjos separados hierarquicamente. Nesse
meio tempo, tive que negar sorvete, chiclete e salgadinhos em geral, dizendo
que não estava com fome. Ele achou estranho, mas não fez um interrogatório e
sugeriu que sentássemos em algum banco para conversarmos. Escolheu o banco mais
longe possível - isto não me causou
surpresa, visto que ele parecia não gostar de multidões – e lá ficamos por
algum tempo, conversando tranquilamente.
Enquanto estávamos ali sentados e eu ouvia sua
voz serena, mas agoniada de alguma forma, percebi o quão frágeis podem ser os
mortais. A fragilidade de seu espírito e de sua mente, a consciência de sua
vulnerabilidade, a morte e a dor que sempre se abate sobre eles. O medo da
moléstia, do tempo que se esvai como um monte de areia ao vento, de perder
alguém que se ama...tudo isso cai com um peso enorme sobre ombros humanos.
Alguns suportam, alguns superam e outros tantos desistem. Vendo sob esta ótica,
a imortalidade e as restrições que sofro como vampiro, me pareceram pífias ante
toda a agonia que um mortal vive.
Relembrei um pouco de minha vida mortal e o
quanto eu, apesar sempre ter ido atrás de algo perigoso, sofria com fome, sede
ou como vivi muito tempo sem conforto algum. Acho que passei a admirar um pouco
os mortais, mas sem deixar de tratá-los como meus brinquedos.
Aquiles falava incessantemente e aquilo, às
vezes, me irritava muito mas eu via suas mãos apertando uma a outra, num gesto
de extremo nervosismo. Era como se cada palavra lhe estocasse o peito e o corpo
se contraísse em dor. Entretanto, eu o ouvia com atenção e até algum fascínio
sobre a sua forma de ver a vida...em como ele alternava euforia e depressão em
questão de minutos. Não tinha conhecido, até então, alguém assim. Subitamente,
Aquiles levantou-se.
- Fiquei aqui falando esse monte de bobagens e
esqueci de comprar a fantasia para a minha irmã!
- Fantasia?
- É....amanhã é halloween, não se lembra? – ele
olhou, meio incrédulo.
- Ah...não sou muito atento à essas coisas. Mas
sua irmã quer fantasia de que?
- De anjo. – o seu tom de voz soava como “ela
está cometendo um erro”.
- Hmm...acho que a última coisa que condiz com
um halloween, é um anjo.
- Você tá certo. Mas a festa é dela, a fantasia
é dela e ela só tem 9 anos mesmo, então deixa ela.
- Verdade. Você pensa em comprar o que,
exatamente?
- Uma túnica rosa e um par de asas. A auréola
minha mãe vai fazer.
- Então vamos parar de conversa e vamos logo
nessa loja pra você comprar essa fantasia.
- Tem certeza de que quer me acompanhar nessa?
Vai ser um saco, porque eu demoro pra escolher roupas em geral.
- Estamos perdendo tempo! – eu dei um sorriso
disfarçado e saí andando.
Entramos na loja e ele começou a vasculhar por
todas as prateleiras e cabides. Máscaras de bruxa, caveiras, ghouls, lobisomem,
Frankenstein, presas, foices, aranhas, morcegos e uma capa de vampiro como
aquela imortalizada por Bela Lugosi. Humpf! A imaginação humana consegue ser
bem ridícula e clichê. Aquiles selecionou algumas peças que julgou serem úteis,
inclusive uma túnica lilás, com algum brilho. Para compor a fantasia, faltavam
justamente as asas de anjo. Ele procurou por toda a loja e, como não encontrou,
pediu ajuda à vendedora. Ela prontificou-se a buscar alguns modelos, que não
ficavam em exposição para evitar danos.
Logo a vendedora desceu as escadas em caracol, com vários pares de asas de tamanhos e cores variadas – sim, a loja teve a boa ideia de fugir do clichê de asas brancas- e as dispôs sobre um balcão de vidro espesso.
Logo a vendedora desceu as escadas em caracol, com vários pares de asas de tamanhos e cores variadas – sim, a loja teve a boa ideia de fugir do clichê de asas brancas- e as dispôs sobre um balcão de vidro espesso.
- Temos estes modelos, garoto.
- São todos muito bonitos! – Aquiles elogiou –
Mas eu preciso das asas brancas.
- Então sinta-se a vontade para olhar estes
pares! Pode experimentar, se quiser, para ver o peso delas e quais delas tem o
suporte mais confortável.
Aquiles decidiu experimentar todas as asas,
desde as mais leves e menores às maiores e mais pesadas. Eu estava perto, tão
somente o observando fazer as compras. A princípio, ele tratou aquilo como uma
obrigação, porém conforme ia escolhendo, pude ver em seus olhos um tipo de
alegria infantil...talvez um desejo de ter mesmo aquelas asas para que pudesse
voar pra algum lugar.
- O que acha destas, Maxim? – ele indagou.
Quando olhei para o lado, vi Aquiles com asas enormes arqueadas para baixo,
chegando à altura dos joelhos. As penas muito alvas e bem costuradas ocultavam a
armação em que foram atadas. Tinha um volume considerável, mas sem exageros e
tudo foi feito com tanto esmero, que quase pude crer que aquele par de asas
havia sido arrancada de um anjo.
Meus olhos reluziram com aquela cena. Aquiles, de
roupas pretas e um crucifixo pendendo sobre o peito, usava aquele belo par de
asas...o conjunto era primoroso. Aquilo era tipicamente gótico: tinha algo de
sagrado naquela figura e, ao mesmo tempo, algo de heresia, blasfêmia ou até
mesmo um sacrilégio...não sei ao certo.
- Um anjo.... – eu disse.
- Anjos são criaturas perfeitas. – ele respondeu.
- Perfeição pode ser algo bem relativo e, para
mim, você está perfeito.
- Obrigado, mas não posso levar estas asas. Vou
levar as menores porque são mais confortáveis para a minha irmã.
- Eu te dou de presente. Pegue aquele par para
a sua irmã e leve este par para você.
- Não posso aceitar...eu nem te conheço, não
somos amigos...por que quer me comprar estas asas de presente?
- Somente aceite o meu presente. Me diverti
bastante hoje com você e é uma forma de agradecer por isso. Encare como uma
troca de presentes.
- Mas...
- Se você não quiser, jogue na lixeira mais
próxima depois que eu for embora. – uma falsa rispidez em minhas palavras. Eu
tinha que fingir indignação, não é?
- Tá bom, tá bom! Eu aceito!
A vendedora colocou tudo em uma sacola e as
asas em uma capa como essa que se usa para guardar terno. Saímos pelo
estacionamento do shopping, que já estava por fechar. Aquiles olhou para o céu
noturno, parou repentinamente e me chamou.
- Maxim, pode me fazer um favor?
- Claro! Diga o que quer.
- Eu vou colocar estas asas e quero que você
tire uma foto minha com o meu celular. Pode fazer isso? Mas quero em um lugar
mais afastado um pouco. Não quero um intruso saindo na minha foto. – ele riu.
- Farei com prazer! – Tirei as asas daquela
proteção e ajudei Aquiles a colocá-las, enquanto fomos para um lugar com menos
transeuntes (que já eram poucos àquela hora da noite).
- Aqui. Este lugar estar perfeito e estes
arbustos vão ficar legais como segundo plano nessa foto. – Aquiles, com este
comentário, me fez pensar que era habituado com fotos ou que, ao menos, tinha
bom gosto para elas.
Olhei para o alto e vi que a lua amarelada
estava em um ângulo bom.
- Aquiles, você se importa se eu tentar algo?
- Não. Tire esta foto primeiro e depois eu sigo
sua sugestão. – Tirei a foto que, de fato, ficou boa como ele disse que
ficaria.
- Agora venha para o lado de cá, Aquiles. – eu o
fiz andar para a direita, alinhando-o com a Lua - Vou tirar esta foto sob um ângulo diferente.
Idealizem, vocês, a cena: Aquiles com o seu
traje negro, um crucifixo prateado pendendo sobre o peito, as asas brancas e,
atrás de sua cabeça, a Lua amarelada. Uma auréola perfeita, semelhante àquelas
presentes nas imagens sacras bizantinas. Aproximei-me de Aquiles e lhe mostrei
a foto.
- Ficou perfeita! Obrigado, Maxim! Ficou melhor
do que aquela anterior!
- Eu tenho bom gosto, não é?
- Excelente gosto. Mas o modelo também conta
muito nesta foto. – ele disse, rindo.
- Isso é um fato, Aquiles....
Eu interrompi a minha fala. Me perdi naquela
imagem do garoto com asas de anjo e no cheiro do sangue que circulava em seu
corpo. Fome? Não, eu não tinha fome. Eu sentia algo semelhante ao que os
mortais chamam de “tesão”.
Lentamente me aproximei de Aquiles, que me
olhava sem reação e lhe enlacei a cintura com o meu braço esquerdo. Com o
direito, segurei-lhe a nuca e aproximei minha boca de seu pescoço.
- Maxim, o que está..... – eu interrompi sua
fala quando minhas presas lhe penetraram a carne branca. Ingeri cada gole de seu
sangue quente e repleto de memórias, imagens e de emoções. Uma de suas lágrimas
caiu em minha mão e as minhas caiam em suas roupas e no chão, tingindo-os de
vermelho. Aquiles chorava sentindo a dor da minha mordida e, talvez, por pressentir
a morte se aproximar. Eu me encontrava em dúvida: transformá-lo em vampiro ou
não? Ele seria um vampiro belíssimo mas extremamente propício a enlouquecer,
pois sua mente e seu espírito eram frágeis. Dar poder para uma mente fraca, é
atirá-la à insanidade.
Seu coração cessou. Meu êxtase cessara no mesmo
instante. No rosto de Aquiles ainda rolava uma lágrima. No meu rosto, várias
lágrimas desciam. Senti um tipo de culpa por destruir algo tão belo e puro,
apesar de humano...ele era tão frágil que por diversas vezes senti vontade de
protegê-lo. Deixei seu corpo, ainda
alado, encostado em uma árvore. Certamente parecia um anjo repousando em sua
placidez, ternura e beleza celestial.
“Creia-me, meu anjo, que sinto causar sua ruína!
Eu sou aquele que apaga as estrelas do céu,
Eu sou aquele que derrama sangue inocente,
Eu sou aquele que vive da vida alheia
Creia-me, meu anjo, que eu o amei!
Eu sou aquele que traz a morte junto ao amor
Eu sou aquele que eterniza a beleza e faz
Desta beleza uma foice que ceifa cabeças
Creia-me, meu anjo, que derramo lágrimas de sangue!
Creia que estas lágrimas são a sinceridade de uma
Criatura que ludibria e conquista pessoas ao léu.
Creia-me, meu anjo, que estas lágrimas vermelhas
São tão doloridas quanto os meus dentes sendo
Cravados em seu pescoço frágil e macio.
Creia-me, meu anjo, que seu sangue está em mim
Creia-me, meu anjo, que sua memória esta em mim
Creia-me, meu anjo, que seu sentimento está em mim
Creia-me, meu anjo, que juntamente com a vida que se foi, foi também uma parte de mim."
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