sábado, 18 de agosto de 2012

O Devorador de Anjos - Parte I


Eu senti o ar fresco me envolver. Já era noite e estava relativamente frio naquele dia. Abri meus olhos lentamente...como se fosse um humano com preguiça – há muito tempo eu não sei o que é sentir preguiça. Tenho todo o tempo do mundo – e me levantei. Vesti minhas roupas e saí pelas ruas. Não precisava me alimentar pois já o havia feito antes da aurora.
O que me faltava em fome, me sobrava em desejo. Essa era uma daquelas noites em que eu acordo disposto – muito bem disposto – a me divertir com a criatura mais angelical que eu encontrasse. Ah, vocês humanos não saberão nunca o que é isso...nunca! Naquele dia eu não estava com muito ânimo para armar todo um teatro de conquistas e, pensei em fazer uso de minha hipnose. Não, isso não faz meu estilo, mas eu me sentia impaciente demais para desenvolver uma trama.

Um shopping...é...este foi o local escolhido. Eu posso passar despercebido, já que nestes lugares há tantas pessoas bizarras, que até mesmo um vampiro parece normal.

- Inferno! Parece que toda a feiura e toda a senilidade do mundo concentrou-se aqui.

Assim que praguejei, um sorriso se abriu em meus lábios. Creio que meu rosto se iluminou com uma luz diabólica porque vi uma criancinha agarrou-se à barra do vestido de sua mãe. Crianças podem ver o mal velado em um rosto bom.

O garoto havia parado em frente a uma loja de roupas. Muitas peças pretas com cortes e detalhes diferentes, desde o mais formal até o mais informal. Ele pareceu interessado, já que usava roupas igualmente pretas mas em um estilo mais rock. Após uma olhada nas vitrines de roupas e perfumes, saiu caminhando e eu o segui silenciosamente. Ele tinha o caminhar muito bonito...era suave, lento...quase felino. Por fim, eu o vi caminhar em direção à fila de ingressos do cinema. Aquilo me pareceu perfeito, por ser um ambiente que me permite agir facilmente.

Eu pude ouvir qual o filme escolhido por ele e tratei logo de comprar entradas para o mesmo filme. A sessão iria começar e a sala estava quase toda ocupada, com exceção de uns poucos lugares. Como eu odeio multidão! O garoto sentou-se ao lado de uma mulher e eu precisava que ela saísse dali. Nessas horas, nada melhor do que a boa e ancestral hipnose. Me aproximei da mulher, que me olhou no rosto e assim facilitou a hipnose, quando lhe disse umas poucas palavras. Ela levantou-se e eu me sentei ao lado do garoto. Ele me olhou e eu disse:
- Também não entendi. Só pedi licença para que eu pudesse passar – eu disse.
- Essa gente é doida! – ele riu e gesticulou.

Mesmo sob a luz fraca, eu podia ver seus traços finos. Seus lábios de um tom entre o rosa e o vermelho, seu cabelo liso cobrindo parte do rosto, as mãos finas sobre as coxas grossas e um ankh prateado que pendia sobre o seu peito. Porém, era mais do que isso...mais do que beleza. Passei a admirar a forma como ele olhava e sorria durante o filme.

- É o seu ator favorito, não é?
- Sim. Ele é um ótimo ator...e é lindo!
- Também gosto muito do trabalho dele. É um dos poucos realmente talentoso e capaz de protagonizar qualquer filme.

Trocamos algumas palavras durante o filme, mas fiz questão de agir como um cordeiro, dizendo que não queria atrapalhar com meus comentários. O garoto tão somente sorria e eu escutei o ritmo de seu coração se alterar. Até agora eu não havia agido como eu pensei que faria...eu estava encantado por aquele garoto. Mas que fique claro que, quando me encanto com alguém, eu tão somente sou mais cuidadoso e não consigo simplesmente me aproveitar como faço com pessoas comuns. Hmm...aquele filme era bom e com uma ótima trilha sonora. Eu via o garoto arrepiar-se hora ou outra, mas não sei dizer que tipo de sentimento o tomava naqueles instantes. O filme estava quase por acabar . Dirigi-me ao garoto, que eu ainda não havia sequer perguntado pelo nome e lhe disse:

- Prazer, Maxim! Qual o seu nome? – e lhe estendi a minha mão.
- Aquiles. – ele respondeu sério, mas com simpatia.
- Aquiles?! É um...
- Sim, é relativamente diferente... – ele disse, com alguma agressividade.
- Não ia dizer isso. Ia dizer que é um nome que não combina muito com sua aparência. Você não aparenta força, agressividade, brutalidade...muito menos uma quase invulnerabilidade. Diria até que você é bem sensível.
- É...pensando por esse lado... – ele riu – mas se eu fosse o lendário Aquiles, procuraria uma flecha que pudesse acertar meu calcanhar. Não tenho intenção de viver muito.

Aquiles disse isso e baixou o olhar. A cada hora ficava melhor! Espírito fraco equivale à uma mente fraca, que equivale à uma conquista fácil. Àquela altura, um convite para que um acompanhasse o outro era desnecessário. Podia perceber o interesse dele em mim...talvez somente uma curiosidade por uma figura tão...incomum. Eu saí da sala quando o filme acabou e Aquiles veio logo atrás.

- Gosta de música?
- Gosto bastante, Aquiles. Por quê?
- Estou querendo passar numa loja de cd’s. Tá afim?
- Claro! Música é sempre bom. Quero ver se tem bom gosto pra música como tem para roupas.
- Tenho bom gosto para tudo! – ele disse, simulando uma ausência de modéstia.

Entramos na loja e ele ficou vasculhando as prateleiras de cd’s e dvd’s variados. Não perdi meu tempo dando atenção ao que ele olhava, mas sim a ele próprio. Observei seus traços, suas expressões, a forma como movimentava as mãos e ajeitava o cabelo. Até mesmo o seu olhar de contentamento quando via certos tipos de banda.  Não era mera observação de admiração...era também uma forma de ver como eu poderia me adequar ao seu jeito. Eu queria Aquiles. Não sei por quanto tempo, mas eu o desejava.

Nestas lojas modernas, sempre há players com fones disponíveis para que os compradores possam ouvir certas faixas de alguns álbuns à venda. Aquiles escolheu um deles, pôs no player e pôs os fones no ouvido. Eu ouvi seu coração acelerar, o sangue correr mais rápido, ouvi um leve estalar nas articulações das mãos e vi sua face se contrair...as lágrimas rolaram. Lágrimas cristalinas com um cheiro leve que quase me lembrou a brisa que vem do mar. Lágrimas cristalinas e tão puras...tão diferentes das minhas, que são sangue... que são vermelhas pela luxúria e violência de um vampiro.  

Creio que uma ou outra pessoa hesitaria em tomar alguma atitude. Lágrimas costumam deixar humanos desconfortáveis, mas um vampiro? Eu não via oportunidade melhor para me aproximar.

- Parece que algo atingiu o calcanhar do Aquiles. – eu disse, com a voz modulada e sutilmente sedutora e envolvendo-o em meus braços.
- Eu... – As palavras foram engolidas.
- Não precisa dizer nada. Chore à vontade e acalme-se!

Talvez ele tenha ficado ali, com os fones nos ouvidos e o rosto escondido no meu peito por alguns instantes. Minha roupa, de um vermelho vivo, estava relativamente umedecida pelas lágrimas do garoto. Eu senti seus soluços cessarem, o ritmo de seu  coração voltar ao normal e, então, pus minha mão em seu queixo para induzir Aquiles a olhar para o meu rosto.

- Está melhor?
- Estou, obrigado. Molhei toda a sua blusa... – ele sorriu – desculpa por isso? Meu deus! Minha cara deve tá péssima!
- Não...você continua bonito. Só é uma beleza que nem todos apreciam. – Deixo claro, aqui, que eu não estava mentindo. Realmente ele continuava bonito, com o rosto ainda molhado e levemente ruborizado.
- Me desculpa por tudo....eu...eu acho melhor ir pra casa.
- E perder esta ótima companhia que sou eu? Jamais! Vamos nos divertir e você escolhe os lugares. Eu pago tudo! –
- Eu não posso aceitar.
- É falta de educação recusar este tipo de oferta. Sua mãe nunca lhe disse isso? – peguei sua mão delicada, puxando-o para perto de mim. Ele me seguiu e creio que ele me fez andar por todo o shopping. Entre lojas e mais lojas, Aquiles revelava-se para mim e eu apreciei tanto sua alma e obviamente seu corpo, que desisti de simplesmente matá-lo na primeira oportunidade. Eu não sabia, àquela hora, o que eu faria de fato. Possuo a eternidade e pressa é somente para vocês, humanos efêmeros!





*Postagem dividida em partes para facilitar a leitura*




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