quinta-feira, 6 de junho de 2013

A Queda do Anjo - Capítulo II - O Despertar das Sensações



"Cinco são os sentidos humanos.
  O sexto floresce quando a flor
  Do desejo desabrocha embaixo,
  Trazendo à tona o sétimo pecado..."

Após o meu despertar em meio às sensações do novo mundo, vaguei por várias noites entre as árvores em busca de compreensão...uma tentativa de compreender aquela nova sociedade que se levantara. Todos os dias, logo que a noite caia, eu podia ver as luzes das velas e archotes, além dos fornos acesos cozinhando aves e grãos. Antes de qualquer refeição, os monges rezavam o Pai-Nosso e a Ave Maria. Pude testemunhar muitos conflitos entre os aborígenes e os soldados espanhóis durante a noite, quando os nativos faziam grandes investidas. Era lindo ver as luzes perfiladas e sentir o cheiro de adrenalina no ar. Os espanhóis rufavam os tambores como se fosse um prelúdio de um derramamento de sangue no solo. Por entre as árvores, vinham os aborígenes emitindo ruídos e gritos agudos... o terror penetrava as entranhas hispânicas pois os aborígenes assemelhavam-se a espectros malignos sedentos por um corpo vivo. Sucedendo o derramamento de sangue - dos aborígenes, majoritariamente - vinham os padres e seus pupilos para rezar pelos mortos, pedindo a Deus que os tivesse em bom lugar e que perdoasse os selvagens.

Em uma dessas vezes, algo me chamou a atenção: um jovem mestiço. Como eu vivia escondido nas matas e não frequentava a colônia, nunca o tinha visto. Um belo mestiço de pele morena, - como uma mescla entre branco e índio - cabelos negros com grandes cachos e o corpo esguio levemente atlético, como se os músculos começassem a se desenvolver. Felizmente ele não tinha aquele nariz horroroso (que mais parecia o bico de uma ave de rapina) dos aborígenes, mas sim um nariz levemente caucasiano: nem grande, nem pequeno. O rosto triangular o deixava bem jovial. A boca pequena mas com os lábios convidativos, além de um belo sorriso de dentes extremamente brancos, complementavam  seus grandes olhos amêndoa-esverdeados. Não é segredo que a perdição dos vampiros é a beleza. Eu olhava para aquele jovem como uma raposa olha para uma lebre. Eu o ouvira rezar por várias vezes após aquelas batalhas e sua reza era praticamente um sussurrada. Sua voz era tão bela quanto seu corpo...era como se fosse...aveludada... não há como definir. Era perceptível que ele não gostava nem um pouco daquilo tudo e havia um luto sincero nele, ao contrário do luto encenado dos padres ali presentes. Eu sentia, em sua alma, um tipo de revolta contida.

Tenho a imagem e as sensações armazenadas na minha memória e, ao vasculhá-la, tudo parece acontecer novamente. Voltei todos os meus sentidos vampíricos para o mestiço e lembro da minha boca quase salivar quando o cheiro dele penetrou minhas narinas. Fiquei ali, na penumbra, observando-o e arquivando em minha mente tudo o que sentia. Desde então, passei a rondar aquele mosteiro rústico e belo circundado por uma floresta densa. Observava todos aqueles humanos com cruzes pendentes sobre o peito e os clérigos de baixo escalão pareciam quase tão sofridos quanto o Cristo crucificado. Homens de meia idade e uns poucos que me pareciam octogenários - e que fique claro: um octogenário, naqueles tempos, era um milagre - além das crianças e jovens mestiços.

Aqueles jovens eram quase sempre tratados como escravos, mas tinham comida, abrigo e instrução. Isto certamente lhes parecia uma sorte melhor do que serem somente os bastardos desprezados. Bem, muitas das vezes eram humilhados pelos padres, mas nada é de graça na vida e aquele conforto tinha uma..."tabela de preços", por assim dizer. Certa vez vi o meu jovem ser açoitado por um destes homens de meia idade. Foi açoitado por um destes homens de meia idade, porque era a "personificação do pecado", fruto da fornicação de uma selvagem  que seduziu  um homem cristão a serviço do rei. Já vi usarem, em sua coxa, uma espécie de garrote que fazia o sangue escorrer após algumas horas. Passar alguns dias em jejum ou ajoelhado sobre o milho até que os joelhos sangrassem. Ainda sim, antes de recolher-se em sua clausura e deitar-se sobre um fino colchão de capim, ele orava e sorria, agradecendo a Deus por tudo o que ele tinha. Nestas noites de açoite eu praticamente me satisfazia sem uma gota sequer de sangue em meus lábios, pois aquele jovem era despido de seus trapos e atado a um tronco como São Sebastião. O açoite lhe estalava nas costas e nos glúteos, deixando grandes vergões e até alguns cortes, por onde vazava aquele sangue que mesclava o cheiro do ferro com o sódio do suor - as noites eram sempre quentes nos trópicos - e ainda com  um cheiro...amadeirado, eu diria, que sua pele exalava. Agora imaginem o seu perfume favorito permeando o ar. Adicionem, a esse perfume, um cheiro conhecido e que contrasta com o anterior, sem que isso lhe incomode o olfato. Para finalizar, imaginem ver nesta mesma sala, em meio a tudo isso, uma cena tão sensual que lhes faria desejar deitar-se ali mesmo no chão e refestelar-se no corpo úmido e excitante de outrem. É mais ou menos isso, mas infinitamente mais intenso e somente um vampiro (talvez) compreenderia isso.

Eu me perdia vendo as pernas bronzeadas, os glúteos lisos e levemente arredondados e as costas esguias minando sangue. Passei a ansiar um encontro com ele...passei a ansiá-lo quase tanto quanto anseio sangue. Logo após estes castigos, ele ia banhar-se em um lago próximo - hábito certamente aborígene, pois espanhóis passavam sucessivos dias sem as medidas de higiene - e era quase surreal a imagem daquela pele morena sob o céu noturno, sendo lavada cuidadosamente devido às feridas. Eu, com o meu faro sobrenatural, posso afirmar que a água tem cheiro. É suave, mas se faz presente. Era interessante quando ele mergulhava e emergia lentamente, como um tritão. A água encharcava os grandes cachos de seus cabelos que, com o peso, cediam levemente e cobriam sua testa e parte de suas orelhas. Esta água escorria em pequenos filetes e descreviam uma curva quando atingiam as sobrancelhas medianas e arqueadas. Nesses banhos sob a luz noturna, ele costumava rezar para uma divindade lunar...mas parecia fazê-lo somente para não se desligar de suas origens. Mas já havia abandonado o ritual que eu chamava de "Dança da Terra", onde os nativos ajoelhavam-se e entoavam cânticos, enquanto jogavam terra sobre seus corpos. Era algo feito sempre antes do plantio do milho.

Depois de tanto observar aquele mestiço, ideias começaram a povoar minha mente. Estava chegando o momento de eu me aproximar dele...


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