quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Maxim, O Misericordioso


“Misericórdia. Um sentimento tão típico dos humanos e que, contraditoriamente, é algo que lhes falta. Ganância. Outro sentimento tipicamente humano. Volúpia, luxúria e paixão. Tudo isto também é comumente humano! Os mortais tem por hábito, não à toda hora, compadecerem-se do sofrimento alheio. Em contrapartida, o homem é também extremamente sádico...”

Não me recordo se estas palavras me foram ditas por um monge cristão ou se por algum louco (sábio muitas vezes) que viveu nas ruas. Tudo que sei é que guardo estas palavras comigo como se fosse um versículo da bíblia sagrada . Lembrei-me destas palavras por resgatar uma parte humana após fazer contato com ele...ele que, após alguns gestos, fez-me atingir um êxtase que só os xamãs  conseguem com suas ervas alucinógenas.

Ele...Andrea, um italiano de pele clara, cabelos de um loiro escuro, boca perfeitamente esculpida e vermelha.  Os olhos negros eram dotados de um vazio que, incrivelmente, brilhava...refletiam uma fragilidade e uma tristeza dignas de pena. Mas, ao mesmo tempo, seu olhar era bastante sedutor, doce, quase carinhoso. Em sua mão direita –pequena, branca e de dedos finos lindamente desenhados – carregava um crucifixo em forma de anel. Sempre havia um cachecol em seu pescoço, o que dava um ar elegante ao belíssimo Andrea. Seus olhos pareciam ser sempre delineados por um fino traço escuro e seus sapatos sempre bem lustrados.

Eu acabara de colocar os pés na rua. A Lua me parecia especialmente grande e bela naquela noite. Um cristal de gelo vindo do céu tocou meu rosto. Neve. Pura como uma criança, branca como minha pele, fria como eu. Não muito à frente vi Andrea, que caminhava em sentido contrário ao meu. Ele trajava as vestes que eu descrevi anteriormente e, com a habilidade que há somente nos vampiros, pude observar e memorizar cada detalhe daquele jovem portando uma mochila.

Naquele instante eu o escolhi. Naquele instante eu o desejei para mim. Eu o escolhi, eu o desejei e eu o teria em minhas mãos! Tentei acessar sua mente através da minha telepatia e, para a minha surpresa, foi incrivelmente fácil conseguir. Deste modo descobri, através de suas memórias,  seu nome e algumas de suas preferências.  Passei a segui-lo por sucessivas noites, encontrando-me “de forma casual” com Andrea e provocando conversas que, com o tempo, foram ficando mais íntimas e com menos protocolos sociais.

A cada noite ele revelava-se mais e mais, como se a palidez de sua pele aumentasse gradativamente, revelando-me seu coração pulsante. De alguma forma, apesar de relativa intimidade que possuíamos, os instintos de Andrea pareciam alertá-lo de que algo estava errado,  pois seus músculos encontravam-se sempre rígidos  e sua postura parecia dizer que ele estava prestes a romper em fuga. Devo ressaltar que eu gostava de olhar em seus olhos. Eles eram extremamente melancólicos e sedutores...quase que pedindo para que eu amasse Andrea. Eu o olhava nos olhos e era como se Lacrimosa, o réquiem de Mozart, ecoasse pelo ar e reverberasse nas construções ao redor e em nossos próprios corpos. Não sei por quanto tempo eu conversei com  Andrea. Tempo é algo que eu não me dou ao trabalho de mensurar. Não sei quantas vezes senti compaixão, desejo ou quantas vezes lhe afaguei os cabelos salpicados com flocos de neve parcialmente derretida.

Aquele jogo não me cansava. Eu, sempre dissimulado, Andrea frágil mas na defensiva de certa forma e ambos agindo com aparente naturalidade... como se ele encontrasse sinceridade em mim e eu encontrasse coragem nele. Entretanto, havia alguma paixão ali entre nós.

Uma noite, em que a Lua me pareceu mais brilhante e o céu meio avermelhado, foi escolhido para que algo acontecesse. O vento soprava forte e a neve ainda caía. A violência do vento e a suavidade da neve na mesma cena...tão belo, poético e contrastante...

Meus passos, sempre suaves, mal marcavam a neve no chão. Eu quase flutuava. Era a hora em que eu, habitualmente, encontrava Andrea “por acaso” – mover-se rápida e silenciosamente tem imensas vantagens. – então pus-me a caminhar de forma despretensiosa, como se fosse um transeunte qualquer.
- Você novamente? – Andrea disse, com um sorriso leve no rosto.
- Parece que você e eu estamos destinados a nos encontrarmos. Isso não lhe causa estranheza? Por vezes isto me incomoda. Encontramo-nos de novo no mesmo horário e no mesmo lugar.
- Causa-me estranheza, mas não repulsa ou paranoia ou o menor incômodo. Coincidências da vida...já que estamos aqui, me acompanha em umas boas taças de vinho? Tenho horário livre e sua companhia, de alguma forma, se tornou parte da minha rotina. Meus pais tem um restaurante aqui perto.
- Bem, declinar do convite não seria legal, não é?
- Digo que não combina com sua aparência cavalheiresca. – ele riu.
- Então vamos até lá!

Talvez estejam perguntando-se como diabos eu iria beber o vinho. Pois bem, eu não bebia. Tão somente bebericava, umedecendo os lábios sem ingerir uma gota sequer. Ao passo que  Andrea dava grandes goladas e aquilo quebrava sua imagem de jovem signore. No restaurante de decoração rústica, sempre a meia luz, a calefação tornava o ambiente aconchegante. De certa forma, trazia à tona as lembranças seculares das tavernas que eu frequentava com Nikolas. 
Aquele salão levemente aquecido e o vinho ingerido logo fizeram com que  Andrea tirasse o cachecol, exibindo o pescoço e as artérias repletas de sangue tomado pelo álcool. Aquilo me atiçou ainda mais o apetite e a vontade de tê-lo. Caso eu fosse humano, provavelmente teria salivado como uma fera diante de um pedaço de carne. Creio que meus olhos delataram-me, pois Andrea ajeitou-se na cadeira como se fosse um cordeiro acuado diante de um lobo faminto. Subitamente seu olhar tornou-se voluptuoso, lânguido, além da embriaguez obviamente expressa. Penso que ele idealizou algo bem...carnal em sua mente. Um sorriso me escapou dos lábios naquela hora. Andrea parecia abrir um espaço para que eu o tomasse.

Depois de várias taças de vinho – e eu não ter esvaziado sequer a primeira – disse a Andrea que o levaria para casa, pois ele estava incapaz de caminhar sozinho. Houve, por parte dele, aquela resistência típica dos alcoolizados, que creem sempre em sua sobriedade. No entanto, logo ele cedeu à minha vontade.
Ele apoiou-se em meu ombro, enlaçando meu pescoço com seu braço e assim começamos a caminhar lentamente, um pé após o outro. Seus passos arrastados e cambaleantes marcavam a neve. O cachecol, somente jogado por cima de seus ombros, dançavam ao sabor do vento. A face de Andrea estava ruborizada devido ao álcool.

Chegamos em sua casa. Ele mal pode acertar a fechadura com seus movimentos descoordenados e, com minha ajuda, ouviu-se o click do destravar da porta. Girei a maçaneta dourada  da porta de madeira maciça com entalhes belíssimos e, tão logo a empurrei, vislumbrei a sala. Uma gigantesca TV  cercada por 3 sofás modernos na cor branca e um tapete com motivos árabes. Nos vértices das paredes, encontrava-se pequenas caixas de som –creio que o nome seja Home Theatre – e um aparelho de som aparentemente caro. Passamos por um vão aberto, ornado com gesso  formando ramas de alguma trepadeira. Eu, particularmente, achei de péssimo gosto, mas sou conservador quanto à estética de construções.  Este vão dava acesso ao corredor que, à direita, via-se a sala de jantar com uma enorme mesa de vidro e cadeiras de metal. Cozinha e toilette provavelmente localizavam-se no primeiro pavimento, mas não me preocupei em ver. À frente, no corredor, havia uma escadaria que dava acesso ao segundo pavimento onde, segundo o próprio Andrea, localizavam-se os quartos.

- Meu quarto está na 3ª porta à esquerda.
- Sim, jovem signore! Eu o levo até lá, mas vamos com calma. – eu lhe disse e comecei a subir lentamente as escadas de madeira polida e lustrosa. Andrea ainda estava alcoolizado, mas já não cambaleava tanto.
Chegando ao quarto, fiz com que Andrea sentasse na cama para que eu lhe tirasse os sapatos, o cachecol e o casaco, já que a casa era aquecida. Logo em seguida, ele deitou-se e desandou a falar. Não tenho a mais remota ideia do que ele disse. Pessoas alcoolizadas me irritam profundamente e eu estava ali tão somente por ter outras intenções, que não a de ser “bom samaritano”. Eu não faço caridade. Simplesmente estava de costas  a admirar o quarto e ignorando o que aquele rapaz dizia.

Andrea ficou mudo de repente. Olhei em sua direção e vi que ele caminhava para o banheiro que havia ali no quarto – que era, para ser mais preciso, uma suíte. Lá ele despiu-se  e lavou-se em silêncio absoluto, como se ignorasse a minha existência como eu ignorara a sua há poucos instantes atrás.  Meus olhos voltaram-se para a janela e vi, através dela, a neve  que caía em pequenos flocos cintilantes e alvos. Andrea saiu do banho ainda com o corpo meio molhado, com gotículas escorrendo pelo corpo, e jogou-se na cama nu como estava. Suas pálpebras piscavam lentamente.

- Acho que vou acabar dormindo.
- E vai fazer isso mesmo com uma visita em casa? Isso não é muito educado, signore. – eu ri – A menos que eu me deite com você e durma com você, não o deixarei dormir.
- Como queira. Deite-se aqui. – ele deu de ombros e afastou-se um pouco, dando-me espaço na cama. Sentei-me ao seu lado e mirei seus olhos, seu corpo, atentei à sua respiração e ao som de seu sangue, que parecia se oferecer a mim...era ali. Aquele era o local em que eu me saciaria. Em um movimento rápido beijei os lábios de Andrea, que não fez a menor menção de descontentamento ou desaprovação. Então eu o mordi, fazendo com que o sangue escorresse pelo  queixo e parte formando uma pequena poça no interior de sua boca. Bebi o sangue inundado com o álcool do vinho. Uma leve sensação de torpor tomou meu corpo não-morto. Com a mordida, Andrea esbravejou.

- O que diabos está fazendo?!
- Estou me divertindo! – eu sorri um sorriso cínico e perverso, certamente, e fiz minha mão deslizar até sua genitália.
- Pare com isso! – ele bradou e tentou socar-me o rosto.
- Tolo!  - eu bloqueei o golpe com uma de minhas mãos, dominando-o em seguida – Você não tem a menor chance de conseguir me ferir.
Com a minha mão que ainda estava livre, arranhei-lhe do pescoço ao umbigo. O sangue começou a brotar em microgotas. Minha língua lambeu aqueles ferimentos e o gosto era único. Mais e mais arranhões, mais e mais mordidas, pequenos cortes . Andrea se contorcia e algumas lágrimas lhe escorreram pelo rosto. Por fim, a simples ameaça de tocá-lo ou beijá-lo causava-lhe pânico. Eu adorava ver o sangue brotar em seu corpo retorcendo em dor e o medo em seus olhos.

A Lua parecia minguar juntamente com a vontade (ou até mesmo a própria vida) de Andrea, que era fraco para a dor e já implorava para que eu acabasse com aquilo tudo.

- Bem, eu o libertarei.
- O-ob-obrigado! Leve  o que quiser e me deixe em paz! Eu imploro pelo que há de sagrado nesse mundo!
- Levar...o que eu quiser?
- Sim. O cofre está atrás da geladeira e a senha é...
- Eu não preciso da senha. Cofre atrás da geladeira? Não sei se isso é genial ou ridículo...apesar de que cofres  atrás de quadros é algo bastante clichê, não acha?

Cheguei  na porta do quarto, como se eu fosse realmente descer as escadas, e pude ouvir Andrea suspirar de alívio. Tanto o alívio da dor como o alívio por eu deixá-lo. Ri comigo mesmo,  tentando imaginar o que Andrea pensava que eu era. Talvez acreditava que eu fosse um ladrão comum. Imaginar é algo que pode ser tão interessante quanto descobrir tudo por telepatia. Dei meia volta e o encarei, ele ainda deitado na cama e com o olhar perdido em algo que eu não procurei saber o que era. Talvez tentasse escapar da dor ou esquecer o que vivenciara.

- Você quer que eu o deixe em paz?
- ....
- Eu estou perguntando! Você quer que eu o deixe em paz? – Indaguei, olhando-o nos olhos e com a voz aveludada.
- Sim, s-s-sim! – ele respondeu, gaguejando e com a voz embargada.
- Vou dá-lo a paz. – Beijei-lhe a boca e agradeci – Obrigado pela diversão!

Mordi seu pescoço fazendo o sangue jorrar em minha boca e, com a força descomunal que me é natural,  rasguei-lhe o peito lentamente até que o seu coração se tornasse visível ainda pulsante. Eu ouvia Andrea gritar desesperado e agonizante. Senti prazer e satisfação.

Andrea queria que eu o deixasse em paz e eu o deixei. Sou misericordioso e o livrei das moléstias e das dores deste mundo. Eu lhe dei a paz eterna.

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